Mesmo sendo tal debate relevante, sejam quais forem as intenções das várias vozes de entre os “mais ricos dos mais ricos” que têm vindo a público “mostrar disponibilidade” para pagar mais impostos, reconhecendo como têm sido bem tratados (ou até “mimados), não devemos perder de vista o essencial nem deixar que a atenção seja daí desviada: há demasiadas pessoas a pagar impostos a menos. Não por não reunirem condições para os pagar, mas porque há uma tolerância suave (quando não legitimação explícita) à fraude e evasão fiscal por parte de quem a pode perpetrar. E desta possibilidade resulta uma distorção não apenas do sistema fiscal mas, por intermédio deste, uma perversão da relação entre o Estado e as pessoas e do modelo de sociedade em que vivemos.
Cingir o debate da fuga fiscal aos "mais ricos dos mais ricos" é branquear (todas as outras) distorções estruturais da fiscalidade. Em Portugal, isto é particularmente verdade e especialmente chocante. Os progressos da administração fiscal nos últimos anos foram assinaláveis, é verdade, mas se a máquina de cobrança se tornou mais eficaz, a legislação e o entendimento do que é tributável e como essa tributação pode ser feita deixa demasiadas “portas de saída” e áreas a descoberto. Em compensação, aperta-se cada vez mais a malha aos que dela não têm meios para fugir. Por isso, uma parte demasiado grande do peso fiscal recai sobre estes. E, em tempos de pressão máxima sobre as contas públicas, o mais fácil é gerar mais receitas aumentando ainda o sobre-esforço que lhes é exigido. Quem tem ao eu dispor mecanismos de “consolidação fiscal” (um eufemismo para fraude e evasão), não deixa de “consolidar”; e “consolida” porque lhe é permitido. E quem pode beneficiar da informalidade na economia, não deixa de o fazer.
Não deixa de ser extraordinário que enquanto se pede – se exige – um esforço fiscal cada vez maior aos trabalhadores por contra de outrem, aos trabalhadores e classes médias; ao mesmo tempo que se apertam e focalizam cada vez mais as despesas sociais do Estado, e que esta tendência é vista como uma inutilidade, andemos a discutir candidamente a possibilidade ou até a bondade de taxar “os outros”. E que a questão da economia informal (da clandestinidade à sub-declaração) permaneça como uma preocupação adiada. Porque por estas duas vias, “os outros” não são só ou sobretudo “os mais ricos”, são sectores alargados da população.
Os pobres quando abusam do rendimento mínimo são preguiçosos, malandros, oportunistas e cometem uma fraude imperdoável ao apropriarem-se da riqueza criada por todos sem para ela quererem contribuir. Não sei o que este tipo de etiquetagem fará dos que não são pobres e praticam a evasão e fraude fiscais por desporto e a muito mais do que tostões. Mas por uma vez o governo inglês (insuspeito de progressismo e de ser adepto de intrusões do Estado na esfera privada) acerta: é “moralmente repugnante”.
Agora, se tal declaração é certeira, e é importante que se anunciem medidas no sentido de aumentar a equidade e a transparência fiscais, esta é daquelas matérias em que os murros na mesa não se anunciam, dão-se. Mais: discutamos não só os impostos do pequeno grupo dos milionários, mas formulemos antes a questão de modo a permitir equacionar a equidade fiscal de modo mais alargado. Porque o que é de facto “moralmente repugnante” é que, enquanto sociedade(s), continuemos a tolerar e a permitir como algo aceitável a fraude e a evasão fiscal organizadas: a dos (mais ou menos) ricos, sim, mas de todos os que a praticam. Como se fosse aceitável ou, pior, inevitável; e sabendo bem que esse comportamento em interesse próprio prejudica o interesse público, o interesse geral e necessariamente implica sobrecarregar todos os outros.
andré salgado
miguel cabrita
paula mascarenhas
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vitor gaspar; schauble; conversa privada