O poder local não é a vaca sagrada da democracia em Portugal, disse Miguel Relvas no Prós e Contras de ontem. É difícil não concordar. Mais difícil de perceber é que quando a boleia da austeridade vai ser aproveitada (e bem) para fazer mudanças no mapa, nas regras eleitorais e no modo de governação das autarquias, se perca essa oportunidade - que pode, como mostra a experiência, ser única em largas décadas - para fazer mais do que, fundamentalmente, encontrar maneira de cortar custos ou produzir acima de tudo as mudanças que a isso conduzam.
Essa, sim, é a verdadeira vaca sagrada, o pan-discurso não da democracia mas dos tempos que correm - e não teria de ser assim, mesmo para cumprir objectivos de racionalização financeira, como qualquer leitura em perspectiva do próprio livro verde da reforma da administração local permite perceber.
Dois exemplos:
Mesmo as mudanças positivas, como tornar os executivos homogéneos, reforçando a democracia das escolhas locais, correm o risco de vir a ter efeitos perversos na transparência e na prestação de contas da gestão autárquica. Porque reforçar nominalmente as competências fiscalizadoras das assembleias municipais é criar um ónus a órgãos que pura e simplesmente não têm (nem terão) meios nem capacidade de enforcement de qualquer fiscalização efectiva. Se estes dois passos não forem dados em simultâneo e numa reforma mais ampla, o objectivo de reforçar a democraticidade e transparência do poder local e da sua gestão fica irremediavelmente prejudicado em favor da eventual redução de custos financeiros dos executivos, sem correspondente compensação política da mudança operada.
Outro enviesamento evidente neste debate é a questão do "número" de autarquias e a anunciada vontade de "reduzir para pelo menos metade" a quantidade de freguesias, especialmente urbanas. Este pode ser um objectivo global imperativo, mas em contexto urbano coexistem dois problemas: o das micro-freguesias sem escala nem sentido na governança das cidades e o das macro-freguesias com "excesso de escala" e falta de adequação dos meios e competências para o tipo de actuação "de proximidade" que é exigido. (Já para não falar do problema que é, do ponto de vista da regulação, os desequilíbrios que esta coexistência cria).
Assim, se a dimensão de freguesias como São Cristóvão e São Lourenço ou outras tantas micro-freguesias do centro de Lisboa era injustificável, e o executivo da Câmara Municipal de Lisboa teve a coragem de levar para a frente uma reforma do mapa autárquico de Lisboa que há ainda bem pouco tempo muitos diriam que "ninguém teria coragem de fazer", certamente que a dimensão de freguesias como Odivelas, Benfica, Agualva, Olivais, todas com perto de 50.000 habitantes, ou mesmo mais, está também longe de ser a ideal. Será que para criar freguesias cada município terá necessariamente de agregar outras e a soma ser sempre a negativos? (ver livro verde, pág.19, objectivo 2.2.b); Será que as contas e opções serão forçosamente feitas município a município ou os mapas autárquicos são demasiado importantes para ser deixados aos equilíbrios locais?; haverá critérios imperativos e outros apenas orientadores, com flexibilidade intra- e inter-municipal?
Será que não vai sendo tempo de o Governo dizer com clareza que soluções pretende implementar, se é que tem ideias sobre isso? Por enquanto, "uma reforma de gestão, uma reforma de território e uma reforma politica" é apenas a frase escolhida para subtítulo do livro verde, porque da substância ainda demasiado está por saber.
andré salgado
miguel cabrita
paula mascarenhas
correio.da.vida@gmail.com
vitor gaspar; schauble; conversa privada